sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

ESSA MENINA



Essa meninaAlessandro CastroPuxa, como fede! Parece que papai morreu e esqueceu de ir pro caixão. Alguém tem de fazer alguma coisa, limpar esse quarto, limpá-lo, desinfetar a casa. Está certo que ele não merece, logo ele, sempre quis um filho homem, agora depender de mim... Cheiro horrível! Será que ninguém vai fazer alguma coisa? Será que só eu sinto?Mamãe, quando brava comigo, só para me martirizar, gostava de encher a boca: “essa menina”. Meu pai sempre me chamou assim. Ela sabia o quanto eu não gostava disso e regurgitava: “essa menina”. Nunca ouvi “filha” escapar daquela boca que agora exala com facilidade cruel esse fedor insuportável. Chamar-me de querida, doce, filha ou simplesmente Ana, nem pensar. “Essa menina” como se nem me conhecesse, não houvesse florescido dessa semente agora podre.Com o Robson perdi de vez as esperanças. Olhos, ouvidos, quitutes e palavras, tudo voltado para ele, somente ele. Robson saia flutuando de sua boca, misturado a seu hálito de menta. Bronquite asmática, onde já se viu, morrer disso? A comoção foi imensa, a família se rasgou chorando. Menos ele. Encarcerou a dor, olhava para o branco e diminuto caixão de seu único filho, único filho homem, seriam as palavras que reboavam em seus pensamentos. O olhar seco refletia um firme céu de verão pejado de nuvens. As palavras não saiam, represadas em algum lugar. Parece que apodreceram lá dentro. Ele apodreceu, provavelmente, por guardá-las junto ao afeto que me privou. E mamãe se rasgando, vertia-se em lágrimas. Teria se jogado na cova, comido a terra que cobria seu belo filho, não fosse eu contê-la. A irmã mais velha, não, não se preocupe, ela se vira, é forte. Sim, forte, deve cuidar de si e dos outros. Ela irá limpar isso tudo. Sei o que é pecado, afinal, fiz a primeira comunhão, ouvi o padre na catequese, freqüentava aos domingos a empolgante e produtiva missa. Roupa limpa, branca e engomada; sentava-me tesa e compacta. Nesse momento atentavam para mim, conseguia arrancar sorrisos deles, mas eram de retorno aos cumprimentos — belos filhos, belos pimpolhos, etc. Além disso, minhas orelhas zuniam a cada puxão repreensivo. Que harmonia dominava-os, quando não era a peluda mão paterna, eram as rugas maternas me procurando. o Robson, aquele peste, não parava nunca. Culpa de quem? Quem tinha que cuidá-lo? Quem recebia calantes beliscões? Sei que isso faz parte da rotina milenar da educação, mas lá dentro, bem no fundo, calcinou. Um filho não era igual a outro? Não, isso não existia lá em casa. Não nasci com um pênis pendurado entre as pernas, nasci com uma fenda profunda. E agora, supremo castigo, devo conviver com esse cheiro...Comemorei. Posso dizer sem medo, até com certo orgulho. Festejei a bronquite, enquanto ouvia as tábuas estalarem do embalo do Robson. Mamãe sofreu, murchou como maracujá no cesto. A doença levou o pouco que tinha dos beliscões e da indiferença de meu pai. O pequeno e frágil pimpolho centralizava o ambiente. Tão frágil, tal pai, tal filho. Aquele se foi, este está pior, acabando-se aos poucos, apodrecendo. E “essa menina”, mesmo não querendo, tinha que estar a disposição de ambos. Hoje o fedor se personifica, infesta a casa, parece carne apodrecida, esquecida por dias fora da geladeira. Carne que geme, de tempos em tempos. Carne que exige morfina regularmente. O Robson, pelo menos, não cheirava tanto...Sempre eu, só podia ser eu. Morfina injetável, duas em duas horas. Mas aplicar aonde? Pouco sobrou daquele corpanzil. O que restou são frangalhos, trapos de pele enrugada pelo tempo. E o cheiro só faz aumentar, alguém tem de limpar essa casa, está insuportável. Mal consigo chegar perto daquele cadáver, ter de cuidar e dar remédios. Quem vai limpar isso tudo? Parece a época em que o Robson começou a vomitar pus. Infestou a casa. Aquela golesma verde e grossa pintava os ladrilhos do chão. E vai a filha dedicada escalavrar os joelhos no chão pautado pelos passos noturnos, pelo embalar daquele infante esverdeado.Bronquite não pode matar, é só cuidar direito, diziam os médicos quando chegávamos para as repetidas internações. Remédios, atenções, lágrimas e preces. Nada conseguiu evitar o fim. Parecia tuberculose tal o peso e a textura dos catarros. Nem os médicos sabiam mais. Não resistiu. Cheguei a alimentar doces pensamentos, quem sabe a partir disso ele, sempre ele, notaria minha presença. Que nada. Agora seus olhos tingiram-se de preto. Agora só melancolias o espreitavam. Vivia o trabalho, que não vivia mais nele. Aposentadoria antecipada. Foram condescendentes. Dizem que agrediu um subordinado, deu até hospital. Nunca soubemos direito. Chegando em casa, nem falava conosco, principalmente com “essa menina”. Ficava horas a fio falando com o Robson. Como era lindo e inteligente, seria general, sim senhor. E a foto impávida. E eu e minha definhada mãe tendo de agüentar suas lamúrias depressivas. Mamãe se acabara. Sua carapaça seca não sentia os arredores. Hoje está um zumbi. Pouca força extrai desse arremedo de corpo. Faz questão de levar a comadre no banheiro, maior parte das vezes, errando o bidê. Calada e murcha, ameaça sorrisos quando me vê. Quanto a mim, sigo seus rastros, junto seus trapos, seco seu lambuzo. E, turno após turno, aplico essa maldita injeção naquilo. Em meu pai. Podridão e fedor foram seu maior legado. E tenho de achar espaço entre a pelanca e o osso para a injeção. Se a seringa é velha, se o vidro está opaco pelo uso, que tenho eu a ver com isso? Se o ar insiste em entrar junto é por que supera meus esforços, não é culpa minha. Se não acho veias naquela pele rota, o que fazer? Vou aplicando, assim não ouço seus gemidos, não tenho de ouvir seus parcos lamentos: Robson, Robson, somente, Robson. A dose que o médico recomendou já não é suficiente. Um pouco mais não irá piorar a situação desse trapo corroído pela doença. Isso não fará mais mal a ele, como não fez para o Robson. A secreção esverdeada já empestava o quarto quando comecei a abrir a janela para reciclar o ar, para expurgar aquele cheiro nojento, para arejar o ambiente. O Robson nem tossia quando ventava, ficava na cama olhando para o teto, soltando uns muxoxos. Só assim eu conseguia respirar. Ele não reclamava, nem piorou muito, já estava bem ruim, fedia como carniça em beira de estrada...Agora a situação era pior, o fedor é maior. Essa podridão infesta as frestas das paredes, o quarto não represa mais, espalha-se pela casa. O quarto que partilhávamos, a casa em que cresci e que viu o Robson definhar estava agonizando. As tábuas não mais gemiam, como à época do Robson, mas purgavam a podridão acumulada pelo tempo. Alguém precisa limpar isso tudo, arejar essa casa. Precisa de ar, de muito ar. Ele precisa respirar, como o Robson já precisou. Ele que nunca me deu atenção, que nunca me quis. Ele que agora fede.Agora está inválido, podre, às portas da morte. Eu, “essa menina”, que nada sabe de sorrisos ou afagos, deve cuidá-lo. Logo eu que não vim dotado do que um filho precisa: um bom par de culhões.
ALESSANDRO CASTRO é natural de Santo Ângelo, RS, reside em Porto Alegre, desde 1993, quando tornou-se Funcionário Público Federal. Formou-se em Letras – licenciatura em Literatura pela UFRGS – em 2001, mas é professor de Literatura brasileira em Colégios e Pré-vestibulares da capital e interior desde 1999. Atualmente conclui a Dissertação de Mestrado em Estudos Literários – Machado de Assis, Historiador do Rio de Janeiro – com defesa prevista para final de Julho de 2005.
POSTAGEM LOURDES

Nenhum comentário: